
SÓ TRABALHADORES SÃO ANALISÁVEIS
1 maio 2025 - Jairo Carioca (Psicanalista Periphérico)
O 1º de Maio chega, mais uma vez, cercado de homenagens, discursos e postagens nas redes sociais celebrando o Dia do Trabalhador. Mas, afinal, o que significa ser trabalhador hoje, numa sociedade marcada por exaustão, consumo compulsivo e precarização generalizada da vida? O que sobra da dignidade do trabalho quando tudo é engolido pela lógica empreendedora, pela meritocracia vazia e pela promessa do sucesso individual? Admirável mundo nada novo.
Vivemos numa cultura onde o fracasso virou culpa pessoal, e o sucesso, mérito exclusivo. Num cenário onde milhares de pessoas vivem à margem, discursos celebram os poucos que venceram como se todos tivessem tido as mesmas condições de partida. A palavra de ordem é empreender, e o “empreende-dor” virou a nova figura idealizada. Mas, como psicanalista, entendo que cada discurso constrói laços sociais ou os destrói. E o que há de mais devastador no discurso capitalista é que ele opera justamente pela negação do laço social. Sua engrenagem exige exclusões: da impossibilidade, do sofrimento, da diferença.
Racismo, misoginia, pobreza e exploração são peças estruturais do capitalismo, não falhas. É preciso que existam fracassados para que se exaltem os vencedores. A desigualdade não é um efeito colateral, mas um motor funcional desse sistema. É nesse cenário que proponho o que chamo de paradigma da peripheria como operador clínico. Essa proposta me rendeu o rótulo de herege por parte de setores conservadores da psicanálise. Ouvi de um psicanalista a provocação: “quem pensa o campo social deve escolher entre ser psicanalista ou sociólogo”. Essa dicotomia é não apenas ingênua, mas historicamente equivocada. Foi essa mesma tensão que levou Freud a escrever Totem e Tabu, em resposta às críticas de Adler. E afinal: esse livro pertence à antropologia ou à psicanálise? A pergunta em si denuncia a tentativa de enclausurar saberes em compartimentos estéreis. Argumentum ad hominem.
Sou psicanalista, sim. Mas também sou cidadão. E, desse lugar, afirmo minha posição antifascista, uma postura ética que, para mim, não contradiz o ofício clínico. Pelo contrário, o saber que a psicanálise me deu não se desliga de minha responsabilidade política. Não milito em partidos, não faço parte de organizações políticas, mas minha escuta e meu gesto clínico são atravessados por uma aposta no sujeito, inclusive o sujeito coletivo. Nasci preto, periphérico e marginal, não sei falar de outro lugar.
Ao evocar o paradigma da periferia, ecoo Lacan: não há transmissão de psicanálise senão de um a um. Cada sujeito reinventa sua relação com o inconsciente, com o desejo, com o saber. Historicamente, analistas mantiveram distância política. Muitos eram conservadores. Mesmo assim, institutos gratuitos de atendimento psicanalítico surgiram na Europa. Lacan, por sua vez, recusava os rótulos ideológicos. Dizia que, ao matar um mestre, sempre encontramos outro. Por isso, não coloco Freud nem Lacan em pedestal. Tampouco busco um novo mestre. Minha ética é a do objeto a: da falta que funda o desejo.
No dia do trabalhador, vale lembrar de um ponto crucial no ensino de Lacan: os ultra-ricos não são analisáveis. Não porque não possam pagar, mas porque não pagam com o que realmente custa, o trabalho. Para que uma análise aconteça, é preciso que algo do sujeito esteja em jogo. O capital por si só não opera essa aposta. A análise exige atravessamento, renúncia simbólica, implicação. E os super-ricos vivem de rendas e heranças, não de trabalho.
Por isso, afirmo: só trabalhadores são analisáveis. Porque só quem trabalha, simbolicamente, pode abrir mão de algo que lhe custa para colocar em jogo seu desejo. O restante é só gozo e acumulação, o exato oposto da travessia analítica.